24 de outubro de 2009

Na senda do último texto


Na passada sexta-feira, em mais um dia de intensa labuta, ao necessitar de consultar a “compilação” do Diário da República de Fevereiro de 1994, os meus olhos passaram por este Despacho Normativo e achei-o muito divertido.
Primeiro, só se lembram de Santa Bárbara quando faz trovoada. Ou seja, Lisboa ia ser a capital europeia da cultura naquele ano e pensaram: “O que é que é castiço e poderá dar dinheiro? Hum… As ruas todas porcas ‘since 1143’ tem piada, a desorganização organizada também é ‘very typical’, mas sem ser isso e a comezaina onde é que vamos arranjar dinheiro que continue a entrar mesmo depois da capital europeia da cultura? É que os museus só dão nessa altura e como o merchandise das lojas é ridículo não nos safamos por aí. Hum… Já sei! Vamos endividar as casas de fado. Estão tão desesperados que aceitam concerteza.”
E assim “saiu” este Despacho, bem despachadinho.
Primeiro o elogio às casas de fado e ao fado enquanto expressão musical de um povo, e depois o “sacudir a água do capote” em relação ao estado económico em que se encontram as casas de fado. Culpa da má gestão das mesmas, decerto.
Depois quase são sinceros. Afirmam que não dá jeito nenhum as casas de fado irem à falência naquela altura. Logo a seguir, tudo bem, mas naquele momento não.
Assim, vamos emprestar dinheiro, e vocês, cândidos, ficam todos contentes por nos prestarem o serviço e ainda ficarem devedores.
E ainda tinham de satisfazer os requisitos a), b), c) e d) do art. 3º. Ora se estivessem enquadrados nessas alíneas, provavelmente não precisariam do empréstimo.
Mas o art. 4º, na alínea a) é mesmo hilariante. Promover a exibição diária de sessões de fado? Acho que não tivemos turistas suficientes para isso. Até estou a ver o patrão da casa de fado a convidar os familiares dos funcionários e a calçar-lhes umas sandálias com umas peúgas brancas para fingirem que eram turistas.
É claro que eles estariam a pensar nos clubes de fado, nas grandes casas de fado. Não acredito que visassem as típicas casas de fado, onde o fado é castiço e até cantado por quem chega  com vontade de “dar de beber à dor”.
Não consigo imaginar uma casa de faduncho de Alfama, perdida nas vielas, receber 15 mil contos para “incentivo” ao negócio, sendo que o intuito do estado não era ajudar mas ser ajudado. Como é que uma casa dessas conseguiria aumentar um terço do capital emprestado no prazo de 6 meses?!

Isto “quem nasce malfadado, melhor fado não terá”.

6 comentários:

  1. critica mordaz, consequente e muito bem elaborada.A sua forma de escrever é superior a muitos que fazem disso profissão.Tomei a liberdade de colocar um link do seu texto anterior no meu facebook.Sei que foram lidos pela editora de fadocravo.blogspot.com, pelo fadista João Braga, pelo escritor e encenador Tiago Torres da Silva, por e disseram-me eles que adoraram.

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  2. Muito obrigada, conseguiu que eu ficasse sem palavras (e pode crer que não é fácil). :)

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  3. não fique sem palavras, que vc precisa delas!Acho que devia enviar o texto Devir, e outros, a jornais e revistas...

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  4. Os meus maiores agradecimentos por me ter em tão boa conta. :)

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  5. Valeu a pena ter saído o Despacho para ter o prazer de ler este texto.
    Era uma boa ideia divulgá-lo.

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  6. Obrigada, d. Benta. Sem querer soar a falsa modéstia, são elogios a mais. Escrevo por impulso (e é dos meus raros impulsos que saem bem).

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